O Congresso e a Lei de Cotas.
Confira o texto publicado no Nexo.
O legislador da nova Lei de 2016 retirou do Poder Executivo a responsabilidade exclusiva pela iniciativa de organizar a revisão da mesma, tornando-a indefinida.
A Lei Federal 12.711/2012, batizada desde seu nascedouro de Lei das Cotas, completa dez anos. Ela veio para normatizar um programa de ação afirmativa em todo o sistema federal de instituições de ensino superior e técnico, criando reserva de 50% das vagas para alunos oriundos da escola públicas e, dentro desse contingente, cotas baseadas em critérios de renda e étnico-raciais (pretos, pardos e indígenas). A aprovação da Lei de Cotas se deu quase uma década após a criação das primeiras políticas de reserva de vagas para negros no ensino público brasileiro. Ao longo do período transcorrido desse momento inicial à aprovação da Lei, as políticas de ação afirmativa se espalharam por quase todas as instituições de ensino superior público brasileiro, estadual e federal, e também pelas universidades privadas, por meio de iniciativas do governo federal, como o Prouni.
A aprovação da Lei em 2012 veio na sequência da decisão do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADPF 186 impetrada pelo partido Democratas, declarando por unanimidade a constitucionalidade das cotas raciais. Essa decisão favorável parece ter animado a aprovação da Lei de Cotas no Congresso. O texto da Lei aprovada continha um artigo sétimo que mandatava sua revisão no prazo de dez anos, a contar de sua publicação. É interessante notar um detalhe. A redação original dizia que “o Poder Executivo promoverá, no prazo de 10 (dez) anos … a revisão do programa”, mas tal passagem foi revisada quando da substituição da Lei original pela lei n. 13.409/2016, que expande o programa para incluir cotas para pessoas com deficiência. No artigo sétimo do novo texto lê-se: “No prazo de dez anos a contar da data de publicação desta Lei, será promovida a revisão do programa”. Isto é, o legislador da nova Lei retirou do Poder Executivo a responsabilidade exclusiva pela iniciativa de organizar a revisão da mesma, tornando-a indefinida.
Um levantamento recente do OLB (Observatório do Legislativo Brasileiro), em parceria com o GEMAA, identificou 30 propostas legislativas ora em tramitação na Câmara dos Deputados que teriam algum impacto sobre o programa federal de cotas raciais. Dessas, 19 foram propostas na atual legislatura
Contudo, segundo o artigo sexto, que permaneceu inalterado, “o Ministério da Educação e a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, da Presidência da República, serão responsáveis pelo acompanhamento e avaliação do programa de que trata esta Lei, ouvida a Fundação Nacional do Índio (Funai)”. Uma interpretação possível para esse aparente paradoxo é que o ME e a Seppir ficariam a cargo do acompanhamento, enquanto algum dos poderes seria responsável pela iniciativa da revisão legislativa. De fato, algumas iniciativas para a criação de uma comissão de acompanhamento do programa foram tomadas durante os mandatos de Dilma Rousseff, mas nenhuma prosperou. Os governos Temer e Bolsonaro não mostraram qualquer disposição para institucionalizar “o acompanhamento e avaliação do programa”. O resultado de toda essa história é que chegamos a 2022, ou seja, ao prazo marcado para a revisão da Lei das Cotas, em contexto de aguda crise política, com um presidente de extrema-direita, que já se declarou publicamente contrário às cotas raciais, e um Congresso fortemente conservador. O que será da Lei de Cotas e, portanto, do maior programa nacional de ação afirmativa?
Um levantamento recente do OLB (Observatório do Legislativo Brasileiro), em parceria com o GEMAA, identificou 30 propostas legislativas ora em tramitação na Câmara dos Deputados que teriam algum impacto sobre o programa federal de cotas raciais. Dessas, 19 foram propostas na atual legislatura. Do total das propostas, 12 são favoráveis (consolidam o programa ou expandem o seu escopo), e 12 contrárias (cancelam o programa ou restringem o seu escopo). Foram 15 propostas feitas por parlamentares dos partidos de direita e 12 dos partidos de esquerda. Na atual legislatura, temos seis propostas da direita, todas contrárias às cotas raciais, e sete da esquerda, sendo seis delas favoráveis e uma neutra, como mostra o gráfico abaixo.
Os exemplos mais significativos de projetos contrários são: o PL 5303/2019, apresentado pelo deputado Dr. Jaziel (PL/CE), o PL 5008/2016, do deputado Vinicius Carvalho (PRB/SP) e o PL 1531/2019, da deputada professora Dayane Pimentel (PSL/BA), que preveem a retirada do critério racial do programa federal, e o PL 1443/2019, da mesma deputada, simplesmente revogam a lei n. 12.711.
Ao mesmo tempo, um conjunto de 39 deputados do PT apresentaram o PL 3422/2021, que prevê a prorrogação do prazo para a revisão da Lei de Cotas por 50 anos, além de normatizar a criação do Conselho Nacional das Ações Afirmativas no Ensino Superior.
Enquanto os PLs contrários apresentados pelos deputados da direita estão parados há vários meses e têm destino incerto no que toca sua tramitação, o PL 3422 teve requerimento de urgência aprovado e está pronto para entrar na pauta de votações do Plenário da Câmara dos Deputados. Essa entrada depende, agora, única e exclusivamente de uma decisão do presidente da casa.
Há, contudo, grande incerteza nesse cenário e elas são de ordem política e institucional. Do ponto de vista político, é preciso notar que Bolsonaro, a despeito de já ter se declarado contrário às cotas raciais, não se esforçou para extinguir os programas nas instituições federais – protegidas por sua autonomia relativa – ou mesmo para articular sua base parlamentar contra essa política, o que redundaria na tramitação e provável aprovação de um dos projetos da direita comentados acima. É útil notar que os principais projetos contrários foram apresentados por parlamentares sem muito destaque público ou poder institucional na Câmara.
As razões que explicam o não agendamento desse tema por parte de Bolsonaro são incertas. Arthur Lira, presidente da Câmara, e Ciro Nogueira, líder do Centrão, tampouco mostraram particular empenho em relação a ele. Talvez temam as consequências eleitorais adversas do cancelamento de um programa muito bem-sucedido, que já beneficiou centenas de milhares de brasileiros. Por outro lado, a aposta da oposição e de algumas entidades da sociedade civil em colocar o tema em evidência é no mínimo arriscada. Os deputados oposicionistas têm taxa muito baixa de sucesso na aprovação de seus projetos legislativos, pois dependem para isso da adesão de fatias do Centrão, o que não é fácil ou frequente. Do total de PLs aprovados nessa legislatura, aqueles propostos por deputados dos partidos de oposição representam 23% 1. É a proporção mais baixa de todas as legislaturas da nova república. Será que vale a pena trazer o tema à tona neste momento?
Resta-nos especular sobre o que aconteceria se houvesse omissão por parte do parlamento em relação a essa matéria, ou seja, se a previsão que consta na lei de avaliação do programa não fosse observada. O Executivo, de fato, não tomou qualquer providência efetiva para que isso ocorresse e é bastante improvável que tal avaliação seja feita a toque de caixa neste ano eleitoral. O texto da Lei não prevê esse cenário e, portanto, nada diz sobre o que aconteceria caso a avaliação e revisão não fosse feita. Em outras palavras, do ponto de vista estritamente legislativo, tal norma continuaria a vigorar até que o parlamento decidisse de outra maneira, ainda que agora em um clima de instabilidade normativa.
É possível que nesse cenário o Executivo tome uma decisão monocrática, que provavelmente seria contra as cotas raciais se isso acontecer ainda no governo Bolsonaro. Tal decisão, contudo, estaria sujeita a ser revogada por ação no Supremo Tribunal Federal, pois a decisão de 2012 é muito clara a respeito da constitucionalidade da política. É importante notar que os atuais PLs contrários às cotas raciais, mesmo se aprovados pelo Congresso, teriam o mesmo problema de contradizerem flagrantemente a decisão do STF.
Por fim, é possível mesmo que um parlamentar acione o STF alegando que o programa de cotas federal tem validade e que, perante o silêncio legislativo, a corte teria que se pronunciar sobre a matéria. Isso, contudo, não mudaria o fato de a composição do tribunal ainda contar com maioria de ministros que participaram da decisão de 2012, inclusive seu relator, Ministro Ricardo Lewandowski e não ter revelado qualquer mudança de direção desde então.
De qualquer maneira, a incerteza que paira sobre a questão da revisão da Lei e a instabilidade política e institucional que caracteriza o atual momento da política brasileira tornam qualquer aposta bastante arriscada.