Bibliografia básica sobre ações afirmativas no ensino superior brasileiro.
Confira o texto publicado no Nexo.
Conheça seis obras centrais para entender a trajetória de criação, implementação e avaliação das políticas de ação afirmativa no BrasilDepois de quase duas décadas das primeiras iniciativas de ação afirmativa no ensino superior brasileiro, centenas de reflexões, análises e avaliações foram desenvolvidas por pessoas que estudam o tema. Com o objetivo de desenhar um roteiro básico de introdução ao tópico, destacamos seis textos que não só sintetizam a discussão, como o fazem de forma exemplar. A partir de diferentes focos, as leituras abaixo conduzem quem lê a um panorama minucioso e didático sobre o histórico da discussão política e acadêmica sobre ações afirmativas no Brasil.
Ação afirmativa: conceito, história e debates
João Feres Júnior, Luiz Augusto Campos, Veronica Toste Daflon e Anna Carolina Venturini (EdUERJ, 2018)
Assinado por alguns dos principais especialistas no tema, o livro é uma introdução didática e informativa, ao mesmo tempo. De início, os autores exploram o conceito de ação afirmativa, examinando seu emprego em diferentes países e confrontando os principais equívocos em torno de sua origem e usos. A segunda parte do livro traça a história das ações afirmativas no mundo, focando nos seus exemplos mais importantes: a Índia, pioneira nesse gênero de política; os Estados Unidos, o caso mais conhecido; e a África do Sul, país onde o seu emprego é mais amplo. Essa seção é especialmente interessante para tomarmos conhecimento de outras experiências em diferentes contextos políticos, assim como para colocar em perspectiva o debate construído no Brasil, ponto abordado na sequência.
Além de sublinharem a importância da participação sistemática dos movimentos sociais na luta pelas cotas, os autores trazem uma interpretação das posições políticas que permearam o debate público, apresentando os principais argumentos mobilizados e os atores sociais envolvidos. Por fim, a obra apresenta um retrato das políticas afirmativas no Brasil, descrevendo seu percurso de implementação e suas características nas universidades públicas brasileiras, e termina com o debate sobre ações afirmativas na pós-graduação, pauta em emergência e que aos poucos tem tomado este espaço ainda profundamente elitizado no país.
O movimento negro no Brasil: ausências, emergências e a produção dos saberes
Nilma Lino Gomes (Política & Sociedade, 2011)
Este artigo tem especial relevância por destacar o papel central dos movimentos negros contemporâneos na reivindicação e construção de políticas de ação afirmativas no Brasil. A partir da análise das experiências e repertórios acumulados por diferentes grupos políticos organizados por pessoas negras no país, Nilma Lino Gomes se debruça sobre suas principais ações, conquistas e articulações transnacionais, para localizar a luta por uma educação racialmente mais diversa.
Ao acompanharmos o percurso histórico desenhado pela autora, identificamos a questão educacional como uma pauta recorrente nas reivindicações dos movimentos negros nacionais, que passam a ter uma articulação mais estreita com o governo brasileiro a partir dos anos 2000. Com isso, foram possíveis mudanças em vários setores públicos, em especial nas universidades, o que se desdobrou em certos avanços, como a implementação das políticas e práticas de ações afirmativas com algum tipo de recorte racial nessas instituições.
Vale destacar também as impressões expostas por Lino Gomes sobre as ações afirmativas. Para a autora, tais políticas teriam um papel de fazer emergir o debate sobre disputas de direitos básicos, como a dignidade e equidade. Além disso, as ações afirmativas seriam fundamentais não somente para uma diversificação do público universitário brasileiro, como também para trazer à tona todo um repertório de saberes construídos por pessoas e grupos negros no país. Teriam, com isso, o potencial de desencadear um processo de reeducação ampla da sociedade, do Estado e das instituições de ensino, tornando a questão racial uma agenda permanente.
Origens e destinos: desigualdades sociais ao longo da vida
Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle Silva (Topbooks, 2003)
Escrito por dois dos principais nomes dos estudos de desigualdades do país, o livro esmiúça um modelo de análise desenvolvido anteriormente pelos autores para mensurar as desigualdades de oportunidades em diferentes etapas do ciclo de vida. Este esquema desenvolvido por Hasembalg e Valle Silva se desdobra desde a infância, passando pela escolaridade, entrada no mercado de trabalho, conjugalidade e formação de uma nova família, tendo como culminância a situação econômica, cultural e social estabelecida na vida adulta.
A primeira etapa, de acordo com os autores, é a origem familiar, na qual os recursos disponíveis para cada integrante da família, assim como a situação social dela, serão cruciais para a trajetória de uma pessoa. A segunda etapa, identificada como internalização de recursos, tem como centro o início da trajetória social das crianças e adolescentes, fazendo com que as possibilidades e as condições em que essa fase acontece sejam o ponto mais importante da análise. A etapa seguinte é a da autonomização de status, que é marcada pelo ingresso no mercado de trabalho, momento em que a pessoa passa a ter um status social próprio. Já na quarta etapa, ocorre a realização de status, a partir da consolidação da posição na estrutura sócio-ocupacional e de distribuição de renda. O fechamento desta última etapa implica na produção de condições econômicas que vão levar, através das gerações seguintes, ao estágio inicial do ciclo.
O ponto chave do texto é a ideia de como cada etapa tende a produzir impactos nas que etapas seguintes, o que poderia caracterizar um cenário de acumulação de desvantagens. Nesse processo, os capitais social, cultural e econômico apresentam um papel central na distribuição das chances de mobilidade social.
O perfil discente das universidades federais mudou pós-Lei de Cotas?
Adriano Senkevics e Úrsula Mattioli Mello (Cadernos de pesquisa, Fundação Carlos Chagas, 2019)
Adriano Senkevics e Úrsula Mattioli Mello apresentam neste trabalho uma das primeiras análises com abrangência nacional do impacto da lei n. 12.711/2012 no perfil de ingressantes das universidades federais brasileiras. A partir da análise dos dados do Censo da Educação Superior e do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), os autores construíram um retrato das mudanças relacionadas a características socioeconômicas e raciais de discentes que ingressaram entre 2012 e 2016 no ensino superior público federal.
Observando os três critérios de delimitação dos beneficiários da política de reserva de vagas subscrita na Lei – escola pública, renda e raça –, os resultados indicam que a política incrementou a participação de egressos do ensino médio público, especialmente entre pessoas pretas, pardas e indígenas. Esse retrato é válido para a maioria das instituições de ensino, principalmente aquelas mais seletivas e que apresentavam patamares de inclusão social mais baixos antes da lei. Vale destacar que, em poucos casos, a aplicação da política federal parece ter penalizado algumas universidades, que passaram a ser menos inclusivas.
Os resultados encontrados neste trabalho são particularmente interessantes pois, além de partirem de uma abordagem inovadora, apresentam um diagnóstico de abrangência nacional, pouco vista em estudos sobre os impactos da Lei de Cotas. Com isso, conseguem colocar em perspectiva comparativa a efetividade da lei em diferentes contextos acadêmicos, identificando possíveis pontos de atenção e melhoria na sua implementação, que tornem o ensino superior público realmente inclusivo.
Desigualdades raciais e políticas públicas: ações afirmativas no governo Lula
Márcia Lima (Novos estudos CEBRAP, 2010)
Neste artigo, a autora avalia as políticas de ações afirmativas, sobretudo os programas federais com recorte racial: o primeiro deles se ocupa em ilustrar políticas da área da educação, já o segundo foca as políticas na área da saúde. Além disso, a autora buscou contextualizar cada iniciativa de ação afirmativa nessas duas áreas, considerando as mudanças que ocorreram ao longo de processos políticos, que tiveram início na fase anterior ao Governo Lula.
O estudo toma como ponto de partida as desigualdades que caracterizam a estrutura social no Brasil, sobretudo as desigualdades raciais. A autora argumenta que a discussão de desigualdades no Brasil e os processos de desigualdades identificados entre grupos estão de acordo com a literatura internacional, que aponta características adscritas dos indivíduos (raça e sexo) como variáveis fundamentais à compreensão da reprodução das disparidades socioeconômicas.
O artigo conclui que as políticas afirmativas devem atingir efeitos distributivos, ainda que as iniciativas não tenham caráter valorativo. Assim sendo, o texto defende que o critério para se enquadrar nos grupos beneficiários das políticas afirmativas, com o recorte racial, não deveria ter a proxy de extrema pobreza, uma vez que podem resultar um reconhecimento não distributivo, sem seguir os princípios da igualdade.
O pardo como dilema político
Luiz Augusto Campos (Insight Inteligência, 2013)
O artigo remonta o histórico das classificações de raça no Brasil e o impacto das ações afirmativas em sua ressignificação recente. Além disso, aborda como as terminologias utilizadas eram permeadas pelas correntes de pensamento que predominavam nas relações raciais brasileiras.
A primeira parte do artigo se preocupa em apontar a dificuldade de instituições estatais em definir os grupos raciais brasileiros. A segunda seção apresenta o trabalho dos sociólogos Carlos Hasenbalg e Nelson do Vale Silva, pioneiros em demonstrar as evidências da discriminação racial no Brasil, a partir dos dados censitários. Os autores concluíram que havia uma grande diferença nas taxas de mobilidade entre os “brancos” e “não brancos”. A seção subsequente discute a instrumentalização das análises e informações geradas pela área da sociologia por parte dos movimentos negros, o que não apenas resultou em reivindicações políticas por equidade das oportunidades, como também levou à politização crescente da própria negritude. Na quarta seção, o autor explora os resultados da implementação das ações afirmativas no Brasil e seus impactos nessas classificações raciais
Com a expansão das políticas ações afirmativas no Brasil, o debate público em torno das cotas gerou questões relacionadas sobre quem seriam os públicos beneficiários da política, ou seja, um questionamento na ordem de quem é negro no Brasil. Indicando que, além de um dilema político para o governo, a definição de pardo adquiriu cunho político. Todo esse debate adquiriu relevância renovada com as controvérsias recentes sobre a adoção de Comissões de Heteroidentificação Racial em inúmeras universidades e órgãos públicos.