Ações afirmativas para indígenas nas universidades públicas brasileiras.
Confira o texto publicado no Nexo.
Ações afirmativas demandam um desenho de política pública que garanta investimentos financeiros na permanência dos estudantes nas universidades, e a preparação de material didático e capacitação de pessoal para lidar com a sua diversidade em termos culturaisA primeira política de ação afirmativa voltada especificamente para indígenas em cursos regulares de graduação foi criada no Paraná, em cumprimento da lei estadual 13.134, de 2001, ou seja, dois anos antes da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e da Uneb (Universidade do Estado da Bahia) implementarem cotas para negros(as) em seus quadros. A lei reservava apenas três vagas em cada uma das universidades do estado, e foi desenhada sem consultar quer os representantes das instituições, quer os próprios indígenas. Além disso, se valia de expressões preconceituosas como a de “índio relativamente incapaz”, que foi utilizada no debate para a aprovação da política, justificando-a por uma finalidade “assistencialista” (Paulino, 2013, p.281).
Por força da lei 12.711, de 2012, as políticas de ação afirmativa para a população indígena tornaram-se obrigatórias em todas as universidades federais, no bojo da reserva de vagas para pretos, pardos e indígenas, recorte conhecido como PPI. No desenho da lei federal, a extensão da reserva de vagas é igual à proporção desses três grupos populacionais agregados em relação à população total de cada estado, e tal reserva incide somente sobre 50% das vagas – o restante permanece destinado à concorrência geral. Não podemos propriamente falar de uma ação afirmativa para indígenas no programa federal, pois não há na letra da lei mecanismos que garantam sua presença nos quadros estudantis ingressantes. Em outras palavras, a reserva para PPIs pode ser preenchida integralmente por pretos e pardos. Desde que entrou em vigência, a lei federal passou a uniformizar a oferta de vagas para indígenas no sistema federal de educação superior. Em 2019, 44 das 67 universidades federais do país – cerca de ⅔ – beneficiavam os indígenas apenas a partir do programa instituído pela lei 12.711 (Freitas; Portela; Flor; Feres Júnior, 2022).
Mas há também programas de ação afirmativa para indígenas que foram instituídos por leis estaduais ou resoluções próprias das instituições universitárias federais ou estaduais. Esses programas para indígenas estavam presentes em 53 universidades públicas (de um total de 106) em 2019. O gráfico 1 mostra que, desconsideradas as reservas derivadas da lei 12.711, as universidades federais destinam no agregado 2,2% de suas vagas ao grupo, enquanto a proporção nas universidades estaduais é de 5,7%.
As 7.988 vagas destinadas à população indígena estão distribuídas em 53 universidades, sendo 30 estaduais e 23 federais, espalhadas por 18 das 27 unidades federativas do Brasil. São Paulo é o único estado em que o número de vagas reservadas para indígenas chega à casa do milhar. Na outra ponta da distribuição está o Amapá, estado da Amazônia Legal cujas universidades disponibilizam apenas 7 vagas para o grupo.
Por fim, a tabela 1 apresenta como dado central o IIR (Índice de Inclusão Racial), que avalia a eficácia inclusiva das políticas de ação afirmativa para indígenas nas universidades analisadas. Seu cálculo corresponde à proporção de vagas reservadas por políticas específicas para indígenas dividida pela proporção total dessa parcela da população em cada um dos 18 estados em que as instituições estão instaladas, de acordo com os dados demográficos do censo realizado pelo IBGE em 2010. Quanto mais próximo de 1 é o valor do IIR, mais a proporção de indígenas na universidade reflete a proporção dessa população no estado.
O IIR mostra que as universidades vêm conseguindo espelhar em suas políticas de inclusão a população indígena de cada estado, sendo que na maioria deles a representação total é ultrapassada. Isso acontece, em grande medida, porque a população indígena dos estados é bastante baixa. Tomemos como exemplo novamente o Amapá: as 7 vagas disponibilizadas no estado já são suficientes para que seu IIR atinja 1,0, mas naquele estado apenas 1% da população se identifica como indígena. Roraima é o único caso em que a proporção da reserva fica um pouco abaixo dessa marca populacional, o que é curioso, pois é o estado com maior proporção de população indígena (11%), entre os casos analisados.
Os dados parecem auspiciosos do ponto de vista da inclusão, pois as universidades estão disponibilizando ações afirmativas para indígenas em proporções que representam a presença da população em cada estado examinado. Resta saber se esse público está realmente acessando tal política. Infelizmente, as universidades ou mesmo o MEC não publicam dados acerca das matrículas efetivas feitas nas instituições de ensino superior. Ademais, ações afirmativas demandam um desenho de política pública que cubra diferentes frentes, pois dificilmente são exitosas sem investimentos financeiros na permanência desses estudantes nas universidades, e sem a preparação de material didático e capacitação de pessoal para lidar com a sua diversidade em termos culturais. Também é importante considerar que as universidades regidas pela lei 12.711 muitas vezes não põem em prática medidas específicas para beneficiar essa população. Isso ocorre inclusive nos seus métodos de seleção, que são, no geral, baseados em conhecimentos de base eurocêntrica, tidos como universais (Freitas, Portela, Flor & Feres Júnior, 2022), como, por exemplo, nos próprios conteúdos do Enem (Cardoso, 2020, p. 13).
Ao que tudo indica, políticas localizadas, com medidas específicas para inclusão e manutenção dessa população nas universidades, podem apresentar maior efetividade. Isso é especialmente relevante para o caso em questão, pois processos migratórios não costumam ser vantajosos para os indígenas, que têm o direito à terra como uma de suas principais bandeiras políticas.