A diversificação racial e econômica do ensino superior público brasileiro depois das cotas.
Confira o texto publicado no Nexo.
Se em 2001, as classes C, D e E representavam apenas 19,3% do alunado, em 2021, responderam por 50% dos discentes. Já estudantes pretos, pardos e indígenas se tornaram maioria no ensino superior.
Um dos desafios das pesquisas sobre os impactos das ações afirmativas no Brasil é aferir o quanto nosso ensino superior se diversificou depois da sua adoção. Contamos com ricas bases de dados educacionais para tal, mas elas não se encontram integradas. Outro obstáculo é a existência de múltiplos modelos seletivos em cada um dos sistemas educacionais (federal, estadual e municipal) e níveis de ensino (superior, médio e fundamental).
Uma forma de contornar esses empecilhos é trabalhar com estimativas oriundas das pesquisas amostrais do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Embora elas se baseiem nas respostas dadas pela população e em desenhos amostrais com relativa margem de erro, suas estimativas têm validade nacional e amplitude temporal suficiente para medirmos o quanto nosso ensino superior se diversificou racial e economicamente.
Inspirados no texto publicado por Adriano Senkevics neste mesmo Índex, apresentamos aqui alguns dados sobre a diversificação racial e econômica do ensino superior brasileiro, focando especificamente nas instituições públicas. Para tal, nos baseamos em estimativas calculadas a partir da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), realizada pelo IBGE.
Houve uma intensa diversificação racial e econômica do ensino superior público brasileiro no período analisado
Até 2016, a Pnad era realizada anualmente. Depois disso, passou-se a adotar a metodologia contínua. Todos os dados utilizados se referem à população brasileira jovem (entre 18 e 24 anos). Os gráficos abaixo se relacionam a perguntas sobre os indivíduos que, no momento da pesquisa, declaravam frequentar cursos em instituições públicas de ensino superior. De acordo com a legislação, ensino superior público no Brasil abrange as faculdades e universidades onde se lecionam cursos de graduação (bacharelado e licenciatura) e os institutos técnicos que ofertam cursos de tecnólogos, ligados aos governos federal, estadual e municipal.
Como veremos, houve uma intensa diversificação racial e econômica do ensino superior público brasileiro no período analisado. Para mensurar a diversificação econômica, dividimos os grupos de renda em cada ano por cinco, formando cinco classes ou quintos de renda. Em 2001, a “classe A” ou primeiro quinto de renda, que reúne a camada mais rica da população, correspondia a 55,5% das matrículas no ensino superior público. Em 2021, o mesmo grupo respondia por apenas 28,7% dos estudantes. As classes C, D e E somadas representavam apenas 19,3% do alunado em 2001, e hoje respondem por 50% do alunado.
Apesar do avanço de quase 30 pontos percentuais dos mais pobres, o gráfico também traz um dado preocupante: a inversão da tendência de diversificação a partir de 2020. Ainda é cedo para determinar se o processo de diversificação econômica do ensino superior público se estagnou ou se ele está retroagindo. No entanto, o desmonte das políticas públicas, a crise econômica e a pandemia da covid-19 podem ter tido efeitos nefastos nesse processo.
O gráfico a seguir mostra a proporção de estudantes frequentando o ensino superior público de acordo com sua raça autodeclarada. Como é possível notar, 68,5% desses estudantes se declaravam brancos ou amarelos em 2001, antes do advento das políticas afirmativas. No mesmo ano, apenas 31,5% dos estudantes eram pretos, pardos ou indígenas. Em 2021, os estudantes pretos, pardos e indígenas se tornam maioria, somando 52,4%, enquanto os estudantes brancos e amarelos somam 47,6%. Em termos absolutos, isso representa um aumento no número de estudantes autodeclarados pretos, pardos e indígenas de apenas 318.457 em 2001, para 1.268.046 em 2021; ao passo que o número de estudantes brancos e amarelos passou de 691.465 para 1.153.368 no mesmo período.
Mas esse processo de diversificação também precisa ser matizado. Desde de 2016, há uma relativa estabilidade do percentual de pretos, pardos e indígenas, o que pode indicar a estagnação do processo de diversificação. Vale lembrar, que ainda não atingimos uma proporção de estudantes pretos, pardos e indígenas igual àquela presente na população brasileira. Ademais, outros dados indicam uma distribuição desigual desses estudantes nos diferentes cursos de nível superior.
Além disso, temos que levar em conta também o aumento da população geral de pessoas que se autodeclaram pretas, pardas ou indígenas no Brasil, aumento este particularmente relevante entre os jovens. Portanto, mesmo a maior entrada no ensino superior público não é necessariamente sinônimo de que as oportunidades foram equalizadas. O gráfico a seguir ilustra isso. Ele mostra o percentual de jovens entre 18 e 24 anos de cada grupo racial estudando em cursos do ensino público de nível superior.
Primeiramente, verifica-se uma melhora para todos os grupos devido à expansão do ensino superior público no período. A proporção de brancos e amarelos jovens estudando em instituições de ensino superior subiu de 3,8% para 9,5% (um crescimento de 5,7 pontos percentuais, ou 150%), ao passo que para jovens pretos, pardos e indígenas a taxa de matrícula passou de 1,4% para 6,1% (um crescimento de 4,7 pontos percentuais, ou 347%). Assim, nota-se que foram reduzidas as diferenças relativas entre ambos os grupos, devido ao maior crescimento relativo da taxa de matrícula para jovens pretos, pardos e indígenas. Jovens brancos e amarelos passaram a ter 2,8 vezes mais chances de estarem matriculados no ensino superior público que jovens pretos, pardos e indígenas em 2001, para 1,6 vezes mais chances em 2021. Entretanto, é preciso dizer que brancos e amarelos ainda têm um peso maior no ensino superior público do que pretos, pardos e indígenas, o que nos coloca ainda longe de um estágio de equidade que permita cogitar o fim das cotas raciais.
É preciso alertar, contudo, que essa diversificação do ensino superior não pode ser imputada totalmente às políticas de cota. Primeiro, porque estudantes PPI (pretos, pardos e indígenas), bem como estudantes de baixa renda, podem concorrer, e efetivamente concorrem, a vagas do sistema de ampla concorrência. Por isso, nem todo estudante PPI ou de baixa renda é necessariamente cotista. Essas simulações não são capazes de dizer quais dos estudantes se beneficiaram ou não de cotas raciais ou econômicas. Segundo, porque o ensino superior brasileiro viveu outras transformações no período que tiveram impactos na sua diversificação. Houve uma expansão intensa de suas vagas no mesmo período, além de uma maior interiorização dos campi. Terceiro, a própria composição demográfica mudou, com aumento, ainda que incremental, da população autodeclarada preta, parda e indígena.
No entanto, parte importante dessa diversificação parece responder às políticas de ação afirmativa. Em simulações que buscam isolar a contribuição causal de cada um desses processos, Ursula Mello conclui que as políticas de cotas tiveram não apenas um efeito positivo na diversificação do ensino superior, como compensaram a tendência que seleções unificadas como o Sisu marginalizarem grupos subalternos. São necessárias mais pesquisas para saber o quanto exatamente as cotas foram responsáveis pela recente inclusão racial e socioeconômica no ensino superior. Mas não parece haver dúvidas que elas foram fundamentais.